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A poesia de Bárbara Lia quer sempre atrair o universo do sonhador para o real, para a
rua, para a casa, para os amigos e para o que mais lhe pertence intimamente: filhos, amigos,
amores: “guardei nas dobras da alma / os que amo e são meus” (A última chuva, p. 17) 149. E
por que o real é fato nos McDonald’s da vida e no “fluxo anêmico dos carros (de luxo)” (A
última chuva, p. 15), a mística busca dessa poesia é erotizar e sonhar a partir do real, com a
espreita ritual da vidente na “água calêndula no ralo” que “revela”:
a forma
exata
rosto estrangeiro
e o sexo formigueiro
de prostituta de Veneza...
Espie pelas frestas
do Zeppelin
dos sonhos...
Meu mundo:
Sem Florais de Bach
Feng Shui
Mantras.”
(A última chuva, p. 15).
Revelando formas de rosto e sexo pelo transe e pelos sonhos, o mundo se compõe de
ausências, “sem florais de Bach / Feng Shui / Mantras”. Sem esses auxílios místicos para
viver.
A realidade avistada com estranhamento significa, em poesia, colocar ao lado de um
termo real outro surreal. Porque é preciso revigorar a realidade, virando o disco, tocando
outra faixa. Estar atento à faixa que emerge súbita, fora do plano cotidiano é tarefa de quem
avista, de repente, coisas ditas como: “andando por calçadas molhadas / -uma lâmpada
grávida / estremecida de sol” (A última chuva, p. 11), “o algodoal menstrua / sangue branco /
antes da primavera” (Noir, p. 31)150, “meninas nuas em camas de areia / com o pó negro de
Kohl / derretendo em prazer / no olhar” (Noir, p. 41), “Como quem olha entre as frinchas de
um biombo, / vi tuas mãos – lua de Isfahan” (p. 27). emprego
abundante do vocábulo água, além de outros correlatos como chuva, lágrima, gota, pingos,
lago, menstrua, bebe, vinho, chá, abraço líquido, vendaval molhou, enxurrada, enxágua, sede,
sangram, óleos, barco. A maioria dos poemas traz essa marca indelével, a considerar a partir
do próprio título do livro. A poeta prefere a água à areia, pois, dentro do silêncio quebrado
pelo ritmo incômodo dos pingos de “uma torneira vazando / enlouquecendo em azul / a
noite”, o tempo é marcado pelo elemento líquido que “cai em ritmo de segundos, / tatua o
tempo em estilhaços líquidos”.
Além disso, a água não trai como a areia silenciosa – sub-reptícia -- “Os pingos
alertam / o que a areia silencia – enganosa” (A última chuva, p. 27). A água é um símbolo a
ser alcançado, na alquimia da palavra, é a fluência, a limpidez, a pureza. A poeta refaz a
metáfora do tempo – areia – para água, “Com o pingar aflito do tempo – água –” (A última
chuva, p. 27). Mas nesse ritual de passagem, necessita de coragem: “minha alma silenciosa /
necessita de coragem / para a inevitável passagem / de grão de areia para pingo d’água.”( A
última chuva, p. 27).
O elemento mágico comparece no poema Chá para as borboletas, cheiros e flores
num jardim impressionista, onde a infância, recôndito dos primeiros sonhos e desejos, faz
essa poesia sonhar, no mais, com a vida numa dimensão mais doce, amena, tragável:
Chá para as borboletas
Janela – espelho meu.
Fragrância de almíscar selvagem
me violenta.
Menino com aura violeta.
Jovem com juba desgrenhada.
Velocidade lenta.
Garganta do poço
este túnel
cinza,
onde trafego dias.
Penso na infância,
sombra
dos eucaliptos,
recanto secreto
onde eu servia chá às borboletas”.
(A última chuva, p. 32)
Desse jardim lírico de sonho, a visão salta para outro, tenebroso. A visão da loucura e da morte na metáfora da gaiola absurda do pássaro, um crânio branco, um vôo metafísico,
que se apóia na epígrafe Nietzschiana 151, “a essência da felicidade é não ter medo”, a qual se
contamina ainda em termos de insânia, quando Nietzsche escreve ou diz no manicômio:
“Sejamos alegres! Eu sou deus, e fiz esta caricatura”. 152 Para Bárbara, poesia é ter a loucura
bela de um Ícaro, voejar “céus de antes”.
Asas de Nietzsche
a essência da felicidade é não ter medo
(Nietzsche)
Em urdidura silenciosa
escondem o pássaro
no crânio branco
-- arapuca tétrica --
caveira fria.
Asas em valsa
colorida de raios
que entram pelos olhos vazados,
e aquecem feito o fogo
as papoulas
da primeira
primavera.
Asas de pluma se ferem
No osso-cárcere – sangram;
asas metafísicas
voam céus de antes.
(A última chuva, p. 19)
A metonímia das asas, frágeis, delicadas de plumas são o símbolo maior da liberdade personificada pelo pássaro e a sua quase irrestrita ação de vôo. Seu movimento é preso por
algo frio, estático: o crânio-arapuca, o cárcere-gaiola; a imagem é forte: as asas do pássaro
em movimento arrastado de “valsa colorida” sendo feridas nas janelas-olhos vazados. A flor
símbolo é a papoula, sombria, misteriosa, fúnebre em contraste com a beleza da primavera, a
bem dizer como uma recordação do funeral dessa primavera que já passou. Se as asas
sangram, esbatendo-se na grade-osso do cárcere, outras asas, metafísicas, ensejam o vôo
passado de outros céus.
As evocações de ritos celebratórios, de passagens, de símbolos, da hora feiticeira, do
ânimo alterado pela comoção compõem atmosferas para além do real. O poeta projeta em si
uma imagem de arauto de si mesmo, premonitório. A alma do poeta a tudo assiste em seu
devaneio noturno; encanta-se por sua condição de vidência; celebra essa condição em um rito
de passagem, à hora máxima da viragem; recorre à memória, justifica a retomada da vida,
seguindo viagem compreendida apenas pelos que fazem o mesmo caminho, os poetas,
visionários de sede sem fim.
À meia-noite chorarei
À meia-noite chorarei.
Porque sou poeta,
chorarei.
No sonho verei velhos amores,
pensarei no infinito finito,
e segguirei.
Vez por outra lembrarei
a voz do irmão caçula:
Esta estrela de Davi
Na palma esquerda
Significa – protegida pelos céus.
(...)
sou uma maluca elegante
que bebe a vida
(...)
E segue sede gritante,
mochila gasta atrelada às costas,
poesia minha bagagem
sendo apenas compreendida
pelos que fazem a mesma viagem.
(A última chuva, p. 24)
A poeta sonha com o acalanto maternal, um tempo onde havia proteção e força e,
diante da inconstância dos atuais estados anímicos, preza à poeta descrever-se assim: “um dia
sou cinza, / em outros, cata-vento, / e entre eclipses sazonais: / topázio.” (A última chuva, p.
36). A alma rende-se à instabilidade “sem o mel que me cobria” (o mel dos olhos de sua
mãe), alternando os estados de ânimo. Antes, de posse ainda do olhar de mel de sua mãe –
que a via inteira – ela era “- um cata-vento topázio eclipsando o cinza”. Por oposição ao
cinza, cor da tristeza, da morbidez, o amarelo do topázio em forma semovente do cata-vento,
motivado pela força natural do vento; assim se quer o sonho do “presente impossível”,
ansiado, um otimismo que invalida o que é cinza, num tempo em que já não pode tê-lo mais,
pois a mãe já não existe.
(...)
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