quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

DRÃO




“Drão, o amor da gente é como um grão”
Gilberto Gil
.
grão
grão
grão
a cantar
as horas
.
gota
gota
gota
a cantar
a chuva
.
folha
folha
folha
a cantar
o outono
.
bem-te-vi
bem-te-vi
bem-te-vi
a cantar
novo dia
.
lâmina
lâmina
lâmina
a cantar
o amor.
.
(Amar é ferir-se
em
lâminas
sollasidoremifa)
.
.


Bárbara Lia
A ùltima Chuva
Mulheres Emergentes - 2007 









sábado, 12 de dezembro de 2015

poema de "a última chuva" na antologia relevo


Voy a dormir, nodrizamía, acuéstame.
Ponme una lámpara a la cabecera;
una constelación, la que te guste;
AlfonsinaStorni


Piso águas
Veludo nos passos
Pé ante pé
Cubro sua casa de cristal
com minhas lágrimas
Escuto sua voz cobalto,
de paz enfim coberta:
- No despiertes lós pájaros que duermen.







um tango com deus


carpe diem


Edgar Degas




Fluxo anêmico dos carros
(de luxo)
sol selado
de adesivos Mc Donald’s.
Arabescos eróticos
na fumaça cinza
da panificadora ao lado.
Semente masculina
perfumada
amaciando o tecido
da minha pele.
Água calêndula no ralo
revela a forma
exata do rosto estrangeiro
e o sexo formigueiro
de prostituta de Veneza.
Espie pela fresta do Zeppelin
dos sonhos...
Meu mundo:
Sem Florais de Bach
Feng Shui
Mantras.
Músculos da alma
 – expostos –
Cicatrizes mortas,
lâmina que corta
escaras
revela
o mármore de Carrara
 - vivo -

Bárbara Lia
A última chuva

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Um tango com deus


 

tranquei os covardes na sacristia
e explodi o templo

desci a rua de pedra rasgando em fúria
os ídolos e seus pedestais
as estátuas e seus ancestrais.

tranquei os covardes na sacristia
e tombei as torres áridas
que nunca chegarão ao céu
e impedem o tráfego
da poesia & pássaros.

tranquei os covardes na sacristia
guardei nas dobras da alma
os que amo e são meus,
na clareira incendiada de papoulas
dancei um tango com Deus.


Bárbara Lia
A última chuva 
Mulheres Emergentes    (2007)
página


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Clarice






Dois corações selvagens na selva do impossível
Tão perto que o respirar deles é transfusão de sangue.
Depois da noite nuclear – amantes rompendo o ventre da laranja mecânica -
a mostrar viva as entranhas do céu
nego-me a escrever versos para amores lúgubres
plenos de tédio e flacidez no olhar e no abraço
no passo e no sorriso
Depois de deus... Quem me levará ao paraíso?
Prefiro o inferno na selva
Dois corações selvagens
Perto.
Perto.
Perto.


Bárbara Lia
A última chuva 
Mulheres Emergentes    (2007)

página 9


cena de Handmaid's Tale


Mínimo fragmento da Monografia: DUAS TENDÊNCIAS DA NOVÍSSIMA POESIA CURITIBANA NO ALVORECER DO SÉCULO XXI - Márcio Davie Claudino da Cruz




(...)



A poesia de Bárbara Lia quer sempre atrair o universo do sonhador para o real, para a rua, para a casa, para os amigos e para o que mais lhe pertence intimamente: filhos, amigos, amores: “guardei nas dobras da alma / os que amo e são meus” (A última chuva, p. 17) 149. E por que o real é fato nos McDonald’s da vida e no “fluxo anêmico dos carros (de luxo)” (A última chuva, p. 15), a mística busca dessa poesia é erotizar e sonhar a partir do real, com a espreita ritual da vidente na “água calêndula no ralo” que “revela”:


a forma exata 
rosto estrangeiro 
e o sexo formigueiro 
de prostituta de Veneza... 
Espie pelas frestas 
do Zeppelin dos sonhos... 
Meu mundo: 
Sem Florais de Bach 
Feng Shui 
Mantras.” 

(A última chuva, p. 15). 


Revelando formas de rosto e sexo pelo transe e pelos sonhos, o mundo se compõe de ausências, “sem florais de Bach / Feng Shui / Mantras”. Sem esses auxílios místicos para viver.  
A realidade avistada com estranhamento significa, em poesia, colocar ao lado de um termo real outro surreal. Porque é preciso revigorar a realidade, virando o disco, tocando outra faixa. Estar atento à faixa que emerge súbita, fora do plano cotidiano é tarefa de quem avista, de repente, coisas ditas como: “andando por calçadas molhadas / -uma lâmpada grávida / estremecida de sol” (A última chuva, p. 11), “o algodoal menstrua / sangue branco / antes da primavera” (Noir, p. 31)150, “meninas nuas em camas de areia / com o pó negro de Kohl / derretendo em prazer / no olhar” (Noir, p. 41), “Como quem olha entre as frinchas de um biombo, / vi tuas mãos – lua de Isfahan” (p. 27). emprego abundante do vocábulo água, além de outros correlatos como chuva, lágrima, gota, pingos, lago, menstrua, bebe, vinho, chá, abraço líquido, vendaval molhou, enxurrada, enxágua, sede, sangram, óleos, barco. A maioria dos poemas traz essa marca indelével, a considerar a partir do próprio título do livro. A poeta prefere a água à areia, pois, dentro do silêncio quebrado pelo ritmo incômodo dos pingos de “uma torneira vazando / enlouquecendo em azul / a noite”, o tempo é marcado pelo elemento líquido que “cai em ritmo de segundos, / tatua o tempo em estilhaços líquidos”. Além disso, a água não trai como a areia silenciosa – sub-reptícia -- “Os pingos alertam / o que a areia silencia – enganosa” (A última chuva, p. 27). A água é um símbolo a ser alcançado, na alquimia da palavra, é a fluência, a limpidez, a pureza. A poeta refaz a metáfora do tempo – areia – para água, “Com o pingar aflito do tempo – água –” (A última chuva, p. 27). Mas nesse ritual de passagem, necessita de coragem: “minha alma silenciosa / necessita de coragem / para a inevitável passagem / de grão de areia para pingo d’água.”( A última chuva, p. 27). 
 O elemento mágico comparece no poema Chá para as borboletas, cheiros e flores num jardim impressionista, onde a infância, recôndito dos primeiros sonhos e desejos, faz essa poesia sonhar, no mais, com a vida numa dimensão mais doce, amena, tragável: 

Chá para as borboletas 

Janela – espelho meu. 
Fragrância de almíscar selvagem 
me violenta. 
Menino com aura violeta. 
Jovem com juba desgrenhada. 
Velocidade lenta. 

Garganta do poço 
este túnel cinza, 
onde trafego dias. 

Penso na infância, 
sombra dos eucaliptos, 
recanto secreto 
onde eu servia chá às borboletas”. 

(A última chuva, p. 32) 



Desse jardim lírico de sonho, a visão salta para outro, tenebroso. A visão da loucura e da morte na metáfora da gaiola absurda do pássaro, um crânio branco, um vôo metafísico, que se apóia na epígrafe Nietzschiana 151, “a essência da felicidade é não ter medo”, a qual se contamina ainda em termos de insânia, quando Nietzsche escreve ou diz no manicômio: “Sejamos alegres! Eu sou deus, e fiz esta caricatura”. 152 Para Bárbara, poesia é ter a loucura bela de um Ícaro, voejar “céus de antes”.


 Asas de Nietzsche 

a essência da felicidade é não ter medo (Nietzsche) 

 Em urdidura silenciosa 
escondem o pássaro 
no crânio branco 
-- arapuca tétrica -- 
caveira fria. 
Asas em valsa 
colorida de raios 
que entram pelos olhos vazados, 
e aquecem feito o fogo 
as papoulas da primeira 
primavera. 
Asas de pluma se ferem 
No osso-cárcere – sangram; 
asas metafísicas
voam céus de antes. 

(A última chuva, p. 19) 


A metonímia das asas, frágeis, delicadas de plumas são o símbolo maior da liberdade personificada pelo pássaro e a sua quase irrestrita ação de vôo. Seu movimento é preso por algo frio, estático: o crânio-arapuca, o cárcere-gaiola; a imagem é forte: as asas do pássaro em movimento arrastado de “valsa colorida” sendo feridas nas janelas-olhos vazados. A flor símbolo é a papoula, sombria, misteriosa, fúnebre em contraste com a beleza da primavera, a bem dizer como uma recordação do funeral dessa primavera que já passou. Se as asas sangram, esbatendo-se na grade-osso do cárcere, outras asas, metafísicas, ensejam o vôo passado de outros céus. As evocações de ritos celebratórios, de passagens, de símbolos, da hora feiticeira, do ânimo alterado pela comoção compõem atmosferas para além do real. O poeta projeta em si uma imagem de arauto de si mesmo, premonitório. A alma do poeta a tudo assiste em seu devaneio noturno; encanta-se por sua condição de vidência; celebra essa condição em um rito de passagem, à hora máxima da viragem; recorre à memória, justifica a retomada da vida, seguindo viagem compreendida apenas pelos que fazem o mesmo caminho, os poetas, visionários de sede sem fim. 

À meia-noite chorarei 

À meia-noite chorarei. 
Porque sou poeta, chorarei. 
No sonho verei velhos amores, 
pensarei no infinito finito, e segguirei. 
Vez por outra lembrarei 
a voz do irmão caçula: 
Esta estrela de Davi 
Na palma esquerda 
Significa – protegida pelos céus. (...) 
sou uma maluca elegante que bebe a vida (...) 
E segue sede gritante, 
mochila gasta atrelada às costas, 
poesia minha bagagem 
sendo apenas compreendida 
pelos que fazem a mesma viagem. 

(A última chuva, p. 24) 


A poeta sonha com o acalanto maternal, um tempo onde havia proteção e força e, diante da inconstância dos atuais estados anímicos, preza à poeta descrever-se assim: “um dia sou cinza, / em outros, cata-vento, / e entre eclipses sazonais: / topázio.” (A última chuva, p. 36). A alma rende-se à instabilidade “sem o mel que me cobria” (o mel dos olhos de sua mãe), alternando os estados de ânimo. Antes, de posse ainda do olhar de mel de sua mãe – que a via inteira – ela era “- um cata-vento topázio eclipsando o cinza”. Por oposição ao cinza, cor da tristeza, da morbidez, o amarelo do topázio em forma semovente do cata-vento, motivado pela força natural do vento; assim se quer o sonho do “presente impossível”, ansiado, um otimismo que invalida o que é cinza, num tempo em que já não pode tê-lo mais, pois a mãe já não existe. 


(...)


link para a monografia completa 

Tristessa

..




ame quem te ama e conheça o inferno
fogo a fogo no porão do medo
fogo a fogo no cabelo da Medusa
atiçando cobras
atiçando demos.
ame quem te ama e conheça a dor
amputar pernas braços sexo e coração.
ame quem te ama
nesta luta cega
boitatás no milharal
não sobra espiga sobre espiga
e o espantalho, mudo, tira o chapéu
e dança triste no chão de palhas.
ame quem te ama e conheça o inferno
dois sustos travestidos de sons
querendo narrar o que o humano não narra
escrevendo em aramaico o avesso do vivido.
ame quem te ama
e se arrependa de viver rezando pelo amor.
ame quem te ama
e descubra
a agulha fina e gelada do olhar
o rio de deus que rola tua nuca quando ele te toca
o que é não sentir o corpo do outro
cópula de luz.
o que é ter a língua presa o corpo preso o gesto preso
e a alma livre pluma de algodão te levando onde não quer
onde não deve estar, nem teus pés, nem tuas mãos

Bárbara Lia
A última chuva 
Mulheres Emergentes    (2007)

página 11



imagem do filme Match Point - Woody Allen

A chuva na Antologia - Fantasma Civil



































A antologia Fantasma civil, organizada por Ricardo Corona para a Bienal Internacional de Curitiba 2013, reúne 
42 poemas de 42 autores brasileiros que mantêm alguma afinidade com a cidade. O conjunto de poemas acessa lugares de Curitiba, propondo-se a uma cartografia sensível da cidade. Com projeto gráfico da artista visual Eliana Borges, a publicação é composta de folhas soltas acondicionadas em uma caixa. 

Layla


calçadas molhadas
- uma lâmpada grávida 
estremecida de sol 
pequeno - 
a lembrar 
que ainda é verde o trigo
florirá
amanhã
em sol granulado -
farpas de doçura -
sempre


Bárbara Lia
A última chuva 
Mulheres Emergentes    (2007)
página 11


Desdêmona



olhou-me como nuvem
a sugar os vapores
da minha alma.
por que ele é meu deus
guardei-o em um lago
onde Iago
jamais chegará

Bárbara Lia
A última chuva 
Mulheres Emergentes    (2007)
página 12

imagem - Rodolfo Amoedo (Desdêmona)


-- Desdemona no Mural Mulheres Emergentes 
Ano 25     No. 88     Dez.14  Jan. Fev. 2015     Especial, selo 25 anos 
          
                   Tiragem  1.000 Exemplares