quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Mínimo fragmento da Monografia: DUAS TENDÊNCIAS DA NOVÍSSIMA POESIA CURITIBANA NO ALVORECER DO SÉCULO XXI - Márcio Davie Claudino da Cruz




(...)



A poesia de Bárbara Lia quer sempre atrair o universo do sonhador para o real, para a rua, para a casa, para os amigos e para o que mais lhe pertence intimamente: filhos, amigos, amores: “guardei nas dobras da alma / os que amo e são meus” (A última chuva, p. 17) 149. E por que o real é fato nos McDonald’s da vida e no “fluxo anêmico dos carros (de luxo)” (A última chuva, p. 15), a mística busca dessa poesia é erotizar e sonhar a partir do real, com a espreita ritual da vidente na “água calêndula no ralo” que “revela”:


a forma exata 
rosto estrangeiro 
e o sexo formigueiro 
de prostituta de Veneza... 
Espie pelas frestas 
do Zeppelin dos sonhos... 
Meu mundo: 
Sem Florais de Bach 
Feng Shui 
Mantras.” 

(A última chuva, p. 15). 


Revelando formas de rosto e sexo pelo transe e pelos sonhos, o mundo se compõe de ausências, “sem florais de Bach / Feng Shui / Mantras”. Sem esses auxílios místicos para viver.  
A realidade avistada com estranhamento significa, em poesia, colocar ao lado de um termo real outro surreal. Porque é preciso revigorar a realidade, virando o disco, tocando outra faixa. Estar atento à faixa que emerge súbita, fora do plano cotidiano é tarefa de quem avista, de repente, coisas ditas como: “andando por calçadas molhadas / -uma lâmpada grávida / estremecida de sol” (A última chuva, p. 11), “o algodoal menstrua / sangue branco / antes da primavera” (Noir, p. 31)150, “meninas nuas em camas de areia / com o pó negro de Kohl / derretendo em prazer / no olhar” (Noir, p. 41), “Como quem olha entre as frinchas de um biombo, / vi tuas mãos – lua de Isfahan” (p. 27). emprego abundante do vocábulo água, além de outros correlatos como chuva, lágrima, gota, pingos, lago, menstrua, bebe, vinho, chá, abraço líquido, vendaval molhou, enxurrada, enxágua, sede, sangram, óleos, barco. A maioria dos poemas traz essa marca indelével, a considerar a partir do próprio título do livro. A poeta prefere a água à areia, pois, dentro do silêncio quebrado pelo ritmo incômodo dos pingos de “uma torneira vazando / enlouquecendo em azul / a noite”, o tempo é marcado pelo elemento líquido que “cai em ritmo de segundos, / tatua o tempo em estilhaços líquidos”. Além disso, a água não trai como a areia silenciosa – sub-reptícia -- “Os pingos alertam / o que a areia silencia – enganosa” (A última chuva, p. 27). A água é um símbolo a ser alcançado, na alquimia da palavra, é a fluência, a limpidez, a pureza. A poeta refaz a metáfora do tempo – areia – para água, “Com o pingar aflito do tempo – água –” (A última chuva, p. 27). Mas nesse ritual de passagem, necessita de coragem: “minha alma silenciosa / necessita de coragem / para a inevitável passagem / de grão de areia para pingo d’água.”( A última chuva, p. 27). 
 O elemento mágico comparece no poema Chá para as borboletas, cheiros e flores num jardim impressionista, onde a infância, recôndito dos primeiros sonhos e desejos, faz essa poesia sonhar, no mais, com a vida numa dimensão mais doce, amena, tragável: 

Chá para as borboletas 

Janela – espelho meu. 
Fragrância de almíscar selvagem 
me violenta. 
Menino com aura violeta. 
Jovem com juba desgrenhada. 
Velocidade lenta. 

Garganta do poço 
este túnel cinza, 
onde trafego dias. 

Penso na infância, 
sombra dos eucaliptos, 
recanto secreto 
onde eu servia chá às borboletas”. 

(A última chuva, p. 32) 



Desse jardim lírico de sonho, a visão salta para outro, tenebroso. A visão da loucura e da morte na metáfora da gaiola absurda do pássaro, um crânio branco, um vôo metafísico, que se apóia na epígrafe Nietzschiana 151, “a essência da felicidade é não ter medo”, a qual se contamina ainda em termos de insânia, quando Nietzsche escreve ou diz no manicômio: “Sejamos alegres! Eu sou deus, e fiz esta caricatura”. 152 Para Bárbara, poesia é ter a loucura bela de um Ícaro, voejar “céus de antes”.


 Asas de Nietzsche 

a essência da felicidade é não ter medo (Nietzsche) 

 Em urdidura silenciosa 
escondem o pássaro 
no crânio branco 
-- arapuca tétrica -- 
caveira fria. 
Asas em valsa 
colorida de raios 
que entram pelos olhos vazados, 
e aquecem feito o fogo 
as papoulas da primeira 
primavera. 
Asas de pluma se ferem 
No osso-cárcere – sangram; 
asas metafísicas
voam céus de antes. 

(A última chuva, p. 19) 


A metonímia das asas, frágeis, delicadas de plumas são o símbolo maior da liberdade personificada pelo pássaro e a sua quase irrestrita ação de vôo. Seu movimento é preso por algo frio, estático: o crânio-arapuca, o cárcere-gaiola; a imagem é forte: as asas do pássaro em movimento arrastado de “valsa colorida” sendo feridas nas janelas-olhos vazados. A flor símbolo é a papoula, sombria, misteriosa, fúnebre em contraste com a beleza da primavera, a bem dizer como uma recordação do funeral dessa primavera que já passou. Se as asas sangram, esbatendo-se na grade-osso do cárcere, outras asas, metafísicas, ensejam o vôo passado de outros céus. As evocações de ritos celebratórios, de passagens, de símbolos, da hora feiticeira, do ânimo alterado pela comoção compõem atmosferas para além do real. O poeta projeta em si uma imagem de arauto de si mesmo, premonitório. A alma do poeta a tudo assiste em seu devaneio noturno; encanta-se por sua condição de vidência; celebra essa condição em um rito de passagem, à hora máxima da viragem; recorre à memória, justifica a retomada da vida, seguindo viagem compreendida apenas pelos que fazem o mesmo caminho, os poetas, visionários de sede sem fim. 

À meia-noite chorarei 

À meia-noite chorarei. 
Porque sou poeta, chorarei. 
No sonho verei velhos amores, 
pensarei no infinito finito, e segguirei. 
Vez por outra lembrarei 
a voz do irmão caçula: 
Esta estrela de Davi 
Na palma esquerda 
Significa – protegida pelos céus. (...) 
sou uma maluca elegante que bebe a vida (...) 
E segue sede gritante, 
mochila gasta atrelada às costas, 
poesia minha bagagem 
sendo apenas compreendida 
pelos que fazem a mesma viagem. 

(A última chuva, p. 24) 


A poeta sonha com o acalanto maternal, um tempo onde havia proteção e força e, diante da inconstância dos atuais estados anímicos, preza à poeta descrever-se assim: “um dia sou cinza, / em outros, cata-vento, / e entre eclipses sazonais: / topázio.” (A última chuva, p. 36). A alma rende-se à instabilidade “sem o mel que me cobria” (o mel dos olhos de sua mãe), alternando os estados de ânimo. Antes, de posse ainda do olhar de mel de sua mãe – que a via inteira – ela era “- um cata-vento topázio eclipsando o cinza”. Por oposição ao cinza, cor da tristeza, da morbidez, o amarelo do topázio em forma semovente do cata-vento, motivado pela força natural do vento; assim se quer o sonho do “presente impossível”, ansiado, um otimismo que invalida o que é cinza, num tempo em que já não pode tê-lo mais, pois a mãe já não existe. 


(...)


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